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banzo
a cor da (nossa) saudade

 

 "Naquele dia percebi que, por causa da minha pele, minha vida estava em risco". Jorge Barcelos, de 23 anos, mora em Guapimirim e desde cedo se encontrou no rap. Hoje compõe, participa de batalha de rimas e no gênero musical achou uma forma de resistência. “No rap, a gente fala aquilo que os que estão lá em cima não querem ouvir.

O rap não veio falar que tá tudo uma maravilha, porque a gente que canta não tá nessa realidade. Sempre vejo como nossa luta e por isso que ele não é tão aceito”, conta.  

 

Em sua cidade, Jorge sempre teve de se deparar com empecilhos para realizar uma roda cultural e reunir cantores e admiradores do rap. “Pra gente conseguir fazer tem que ter um milhão de coisas desnecessárias e tem gente que quer fazer. Se eu chamar agora, geral se reúne. Mas sempre tem os obstáculos, como autorizações, fora os os policias que chegam pra interromper o que a gente tá fazendo”, explica. “Se eu chamar um policial na hora que eu estiver precisando, eles não vêm com a mesma pressa que eles vêm pra acabar com uma batalha de rap. Se tu tiver algum problema você tem que falar que é branco e quem fez a besteira é preto”. 

 

No entanto, apesar das dificuldades, em um sábado à noite de 2022, ele e seus amigos conseguiram organizar uma batalha de rimas que contou com o patrocínio de marcas, boa estrutura de som, além da venda de produtos artesanais. Depois que o evento aconteceu, Jorge só sentia alegria e ficou sem acreditar que tudo aquilo tinha acontecido. 

 

Às 22h30, ele e oito amigos, todos de pele preta, decidiram retornar para casa porque moravam no centro da cidade e estavam bem distantes. Voltaram eufóricos, conversando sobre as rimas feitas durante a batalha. Mas para retornar precisavam passar por uma rua deserta sem iluminação. Enquanto iam, um carro passou, e o motorista resmungou algumas palavras para eles. Na hora, não entenderam o que havia sido dito e só conseguiram ver rapidamente quem estava dirigindo. Então, o motorista, um homem branco que estava com o veículo já um pouco distante, parou e gritou: “Vão ficar fumando maconha nessa p**** mesmo?” Jorge e seus amigos não entenderam a reclamação já que nenhum deles estava fumando. “A gente tava tranquilo. A gente não tava devendo ou fazendo algo errado. Depois que respondemos, explicando que não tínhamos nada, ele falou pra gente: ‘Vocês não vão correr não?”.

 

Então, de surpresa, o homem puxou uma arma e deu quatro tiros na direção deles.  “Nossa sorte é que ali era escuro e estávamos distantes, por isso não fomos atingidos. Sempre tive consciência do racismo, mas foi naquele dia que percebi, que por causa do meu tom de pele, minha vida estava em risco”, relata Jorge. 

 

“Todo aquele sentimento de vitória foi embora em questão de segundos. Fomos de um pico de alegria para um pico de medo”. Jorge pontua que o episódio de racismo não só afetou sua mente naquela noite, mas também durante toda aquela semana. “Fiquei andando na rua palmeando pra ver se o cara ia me reconhecer pra me acertar. Porque é difícil não me reconhecer com um cabelão desse aqui. Fiquei com essa neurose na cabeça, tá ligado? Sentimento horrível”.

Como muitos jovens negros, além de ter enfrentado um caso de preconceito racial, Jorge precisou encarar o racismo estrutural e institucional em outros ambientes, principalmente no mercado de trabalho. Seu cabelo e modo de falar sempre foram apresentados como prerrogativas para não ser aceito.

Jorge percebeu o racismo na rejeição da sociedade em relação ao rap,  na maneira como seus traços estéticos não foram bem vistos em certos ambientes e na violência física que poderia ter tirado sua vida. Assim como ele, pessoas negras no Brasil sofrem com a dor de não serem bem-vindas. O sentimento de não pertencimento é reflexo de um passado escravocrata em que aqueles que vieram da Diáspora Africana foram oprimidos e excluídos. Por isso, o banzo perdura na alma. 

entre tempos
 

Durante o período colonial no Brasil, africanos foram cruelmente subjugados à condição de escravidão, enfrentando não apenas a opressão física, mas também uma profunda melancolia causada pela saudade que sentiam de sua terra natal. Por vezes, o sentimento de não pertencimento era tão intenso que levava muitos a depressão, a falta de apetite e, em casos mais extremos, ao suicídio. O ato de atentar contra a própria vida era enxergado como uma possibilidade de retorno para Kalunga, o lar sagrado que recebe todos de volta. Era uma rota de fuga contra a opressão.

Em 1793, o doutor Oliveira Mendes apresentou para a Academia Real de Ciências de Lisboa seus estudos sobre a saúde mental dos escravos nas Américas. Oliveira investigou o adoecimento dos negros e expôs as diferentes razões que causavam esse fenômeno. Ele descobriu que, entre os muitos males, nenhum era pior que o banzo. Nas línguas Quicongo e Quimbundo, “banzo” significa saudade, nostalgia. A palavra era usada para representar tamanho desgosto pela vida que os escravos sentiam.

 

O médico Joaquim Manoel Macedo em seu livro “Considerações sobre Nostalgia”, publicado em 1844, descreve que quando uma pessoa está em sua pátria encontra razões para viver, e por isso, sentir-se pertencente é essencial para qualquer ser humano. Com essas palavras, o médico destacava que não estar em um lugar que não poderiam chamar de lar causava o adoecimento psíquico. Ele escreve:  “O amor da pátria é um poderoso e apertado laço, necessário que nos fraterniza e nos arrebanha em povo [...] Um sentimento grande e majestoso para o qual todo coração humano tem um espaço”.

 

 

 

 

 

 

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Em 1861, na cidade de Salvador, Timóteo, um escravo que recusou-se a ser vendido, deixou uma carta expondo sua angústia e a razão pela qual havia tirado sua própria vida. Nela, descreveu o profundo sofrimento que o consumiu após o fracasso de uma negociação para evitar sua venda em praça pública. Em um trecho, Timóteo escreve: "Há muito tempo que tenho desejo de não existir pois a vida me é aborrecida porém não existindo não será mais, pois quem pode viver sem ter desgostos que vá vivendo, pois a sepultura será sabedoria, e não este infame lugar, digo: e não esta terra de vivos".

"Roda de capoeira" - Johann Moritz Rugendas, 1835

As fotografias de Marc Ferrez destacam-se como uma das maiores contribuições para a documentação visual da escravidão no Brasil- Acervo IMS

O Brasil foi o último país a abolir a escravidão. Em 1888, após mais de três séculos, negros estavam livres perante a lei. Deixaram para trás os lugares onde sofriam e foram lançados à própria sorte. Aqueles que migraram para as cidades enfrentavam a marginalização, já que não conseguiam encontrar oportunidades de emprego, acesso à educação e moradia adequada. Muitos se viam obrigados a aceitar salários precários apenas para sobreviver. Assim, privada de direitos civis e políticos, a população negra era cruelmente excluída das decisões que moldaram o país.

Mesmo após a abolição, aqueles que possuem ascendência africana são submetidos a uma constante opressão, que se manifesta em múltiplas maneiras dentro do contexto social. O que ocorreu no passado reflete-se no presente, e o racismo permeia a estrutura, afetando diariamente as vivências das pessoas negras, resultando em uma sensação de nostalgia que abre feridas.

 

A desigualdade racial não se resume em apenas um cenário. É vista em muitas dimensões e engloba fenômenos sociais que apontam para a necessidade de mudanças estruturais no país. Segundo dados do IBGE, a população negra (pretos e pardos) representa 56,1% dos brasileiros. No entanto, essa parcela da sociedade brasileira enfrenta os maiores índices de vulnerabilidade social e continua sub-representada nos espaços de poder. Veja exemplos nos dados abaixo.

Desde a escravidão no Brasil Colônia até os dias atuais, o racismo tem se adaptado, perpetuando a violência. A comunidade negra, em um contexto de vulnerabilidade, enfrenta sérios danos à sua saúde mental, incluindo o estresse diário, depressão, crises de ansiedade, baixa autoestima, e outros problemas desencadeados pela hegemonia branca. 

saudade 
 

O sofrimento psíquico não tem origem em um fator. O corpo negro testemunha a exclusão, que vai desde agressões verbais até a ausência de condições básicas de saneamento em seu lar. Gabriel Leal, psicólogo e fundador da Redes Vivas (plataforma digital especializada na saúde mental de pessoas negras e LGBTQIAPN+), destaca que o racismo tem um impacto significativo pela presença multifacetada nas experiências de vida. Seja por piadas na escola ou por obstáculos à ascensão no mercado de trabalho,  afrodescendentes são alvos de violência, o que desencadeia sentimentos negativos que impactam a construção de si. 

Gabriel Leal Psicólogo e fundador do Redes Vivas
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 É essencial considerar todos os contextos que envolvem a comunidade negra ao discutir sua saúde mental. Ignorar essas realidades impossibilita o debate e a criação de estratégias de enfrentamento. "A gente vai enxergando que uma coisa está ligada na outra. Se eu não tenho transporte e alimentação, eu não vou conseguir me aprofundar em uma aprendizagem num colégio. Se eu não me aprofundo na aprendizagem, futuramente, eu não estarei apto para adentrar em um espaço universitário, porque já não está estruturado para que essas pessoas negras adentrem. Então, pessoas negras não são pobres, são empobrecidas", complementa Gabriel. 

 De acordo com uma pesquisa feita em 2018 pelo Ministério da Saúde, em parceria com a Universidade de Brasília, o índice de suicídio entre adolescentes e jovens negros é 45% maior do que entre jovens brancos, bem como o risco de desenvolver depressão. Essa realidade afeta principalmente negros na faixa etária de 10 a 29 anos. Além disso, uma pesquisa conduzida pelo Ministério da Saúde em 2016 revelou que seis em cada dez suicídios são cometidos por jovens pretos ou pardos. 

Na infância, o tratamento dispensado às pessoas negras já se diferencia daquele oferecido aos brancos. Crianças negras são as maiores vítimas de ridicularização e são expostas a declarações desumanizadoras que contribuem para a desvalorização de suas características estéticas. “Um dos principais efeitos do racismo é fazer essas pessoas não serem vistas como pessoas, como se não merecessem respeito, afeto. Na escola, crianças negras ouvem apelidos que geram traumas e que duram até a vida adulta. E aí, quando crescem levam muito tempo para aceitar o cabelo, porque sempre ouvem apelidos ligados a coisas não-humanas. Cabelo de bombril, beiço de mula, e por aí vai”, explica Mauro Baracho, mestre em Antropologia e criador do Afroestima. A violência racial por meio de declarações ou ações permite que pessoas negras tenham dificuldade de se aceitar e reconhecer sua identidade. “Isso afeta diretamente a autoestima. A pessoa começa acreditar que é sempre insuficiente, achando que nunca dá conta das coisas, tendo que se provar muito mais do que os outros”, completa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mural próximo a Pedra do Sal no RJ - Foto: Arquivo pessoal 

A violência racial compromete o pleno desenvolvimento da capacidade produtiva. Uma pesquisa conduzida pelo Centro de Desenvolvimento Infantil de Harvard mostrou que o desgaste crônico do racismo em crianças resulta em um aumento das conexões neurais nas regiões cerebrais responsáveis pelo processamento do medo, impulsividade e ansiedade. Esse excesso de atividade nessas áreas cerebrais interfere negativamente naquela dedicada ao planejamento, comportamento e organização. Por consequência, crianças negras podem já bem cedo passarem por crises de ansiedade e apresentarem dificuldades na aprendizagem.

 

O preconceito racial tem um impacto constante no bem-estar emocional da comunidade afrodescendente, levando-a desenvolver uma hipervigilância em relação às suas próprias atitudes. Por esse motivo, quando  pessoas negras cometem erros, elas podem se sentir ainda mais frustradas e estressadas, o que pode levar a uma crença de que precisam redobrar seus esforços.

Caroline Fontes, psicóloga e analista de desenvolvimento da EmpregueAfro, explica que esse fator estressante contribui para o surgimento da Síndrome do Impostor, uma desordem psicológica que se caracteriza por uma ação do indivíduo em nunca reconhecer o seu potencial e viver com um sentimento de não merecer o sucesso.   

“Eu ouço muito das pessoas negras com quem eu converso dizendo que sempre precisam se preparar muito mais, de ter que se doar três vezes mais que qualquer outra pessoa branca. É o sentimento do impostor e aí pessoa nunca acredita que ela é capaz”, argumenta. “E não só isso. Um homem negro de capuz, as pessoas já definem o que ele é. O medo de um homem negro de ver a polícia passar. Uma mulher negra que é vista sob um estigma de ser aquela que vai pegar um café e não a participante da reunião, ou seja, sempre precisa de ajuda ou estar ali para ajudar. Ter que lidar com o que pensam de nós é um estresse diário que enfrentamos e estamos entre a vida e a morte”.  

 "Um negro excelente é um branco médio", define Marcos Lucas, jornalista do SporTV e líder do grupo étnico-racial da Globo. Ele descreve que pessoas negras estão, a todo instante, buscando uma alta performance. Com os espaços dominados pela hegemonia branca, o esforço é sempre maior para um afrodescendente chegar onde deseja. Durante sua jornada no jornalismo, Marcos também precisou enfrentar as raízes do racismo no ambiente de trabalho e na vida acadêmica.

Lucas Silva começou a perceber o racismo desde cedo, embora durante sua infância não tivesse plena compreensão da violência que sofria. À medida que aprofundava o entendimento sobre sua identidade racial, reconhecer-se foi fundamental para preservar sua saúde mental. Diante dos efeitos da colonização que trouxe a ideia da superioridade branca, Lucas explica que o preconceito racial continua a sufocá-lo e a sufocar todos os seus semelhantes.

Aos 25 anos, Francyelli Cunha enfrentou o burnout decorrente do esgotamento ocasionado pelo racismo no ambiente profissional. “Chegou um dia que eu só conseguia chorar. Eu já não aguentava mais”, relata. A exaustão vivenciada por pessoas negras nas experiências laborais vêm da interseção de diversos episódios que se acumulam. Para Francyelli, a sensação de desamparo em um ambiente predominantemente branco foi a principal causa do problema. Pequenas agressões constantes que se juntaram e afetaram sua autoestima. Apesar da dor, ela enfatiza que a aceitação da sua identidade de mulher negra é o que traz cura para o seu cotidiano em espaços tão desiguais. 

O racismo não se limita a atos de violência ou discriminação. Ele também se manifesta de forma mais sutil por meio da construção de um imaginário social idealiza o branco como padrão a ser seguido. Isso pode ter um impacto significativo na autoimagem de pessoas pretas e pardas, que podem enfrentar dificuldades para reconhecer suas virtudes, e assim não explorar suas potencialidades.

Nessa perspectiva, Mauro Baracho percebe os impactos da blackface ("rosto negro"), uma prática recorrente nos Estados Unidos durante o século 19, na qual atores brancos pintavam seus rostos com carvão para zombar dos corpos, costumes e modo de falar dos afrodescendentes. O criador de conteúdo observa que essa ação racista continua a se manifestar de forma mais plural perpetuando estigmas sobre a estética negra.  “É um reducionismo, sabe? A pessoa negra é um rascunho e o branco, o modelo. O negro, a caricatura; o branco, o sujeito. O negro é sempre colocado como o desarrumado, aquele que tem aspecto de feiura, como aquele que não evoluiu”, destaca. "Para o branco, o negro nunca é ele mesmo. É sempre visto sob um estereótipo. Não é à toa que dizem que a Bahia é o estado da preguiça, porque Salvador é cidade com mais negros no Brasil. E o bonito sempre está no sul do país, aquele que veio da Europa [...] Se você é um homem negro você é indomável, gosta de sexo. E não vai ser contratado porque já é visto como incompetente".

A blackface se propõe a despertar o medo da imagem negra e usá-la como entretenimento - Foto: Divulgação

 Mestra em Têxtil e Moda e pesquisadora da moda afro-brasileira, Maria do Carmo afirma que a colonização cumpriu o papel de excluir a estética negra. "A história da moda no Brasil começa a ser contada no século 19, mas tem preocupação em olhar para o que acontece no continente europeu. Não vai contar a história por um viés afro-brasileiro pensando na contribuição das mãos negras. Porque a branquitude exerceu de forma estratégica seu domínio".  Por essa influência da branquitude no imaginário, pessoas negras começam a rejeitar seu jeito de vestir, sua aparência e até mesmo seu comportamento. 

"Nossa corporeidade sempre foi dada como vulgar, inferior e isso por gerações. Nossos pais, avós, familiares também aprenderam que o negro é feio, não era o o padrão. Isso traz um prejuízo psicológico enorme", explica Maria do Carmo. "Hoje tenho 52 anos e na infância, minha mãe sempre achou que se o cabelo crespo não tivesse alisado não estaria arrumado. Sempre foi muito agressiva quanto a isso. E até quando trançava nossos cabelos puxava com muita força. Então, ela foi fortemente violentada pelo modus operandi do racismo e transferiu isso indiretamente para nós".

Durante a adolescência, Júlia Martins, estudante de Jornalismo da UFF, percebeu a discriminação em relação a sua estética ao estar em espaços ocupados por uma maioria branca. “Na escola, eu tinha poucas amigas de cabelo volumoso, cacheado. E a gente trocava dicas, só que as dicas delas não serviam para meu cabelo, sabe? Achavam lindo o meu cabelo seco e não ele molhado. Então, eu costumava prender o cabelo. E aí quando você cresce você começa a entender que a sociedade tem outro padrão de beleza. A mulher negra não está enquadrada”. Júlia ressalta que o racismo afetou sua autoestima de forma significativa, o que, consequentemente, impactou sua forma de se relacionar com os outros. “A gente começa a achar que não merece afeto, não merece cuidado”, detalha.

A falta de confiança em si e, por vezes, o apagamento da própria identidade são consequências da dificuldade em se reconhecer nos espaços de poder. Quando uma pessoa se sente representada, isso a motiva a buscar alcançar seus objetivos, pois assim ela reconhece que é possível chegar onde deseja.

"Ser bem representado é uma forma de você enxergar as possibilidades de futuro. Então se você não tem futuro, você não tem saúde mental", define o jornalista Marcos Lucas. "Você vê onde quer estar um dia e ver que alguém parecido com você chegou lá te traz segurança de que é possível. Então, é o direito básico de pensar no futuro, mas que pra gente não é tão básico, porque isso é negado por meio de uma aniquilação por vários sistemas e operações". 

 

Olhando para esfera acadêmica, mesmo sendo 56,1% da população do Brasil, negros ainda representam apenas 23,6% dos professores universitários, de acordo com o levantamento do IBGE em 2021. Quando olhamos para os maiores cargos de liderança de empresas privadas no país, apenas 4% são ocupados por pessoas pretas ou pardas, segundo um estudo realizado pelo Instituto Ethos. A mesma pesquisa aponta que 57% dos aprendizes e trainees são afrodescendentes. 

"A gente tem que enegrecer os espaços. O congresso, a academia, reitores de universidade. Não tem como falar de saúde mental para uma população que é massacrada todos os dias e que precisa lidar com uma maioria branca no topo", aponta Aiarlen Meneses, professor de enfermagem da UFRJ e Mestre em Saúde Sexual e Gênero. "Marighella já dizia que guerra se vence com guerra. E aqui digo uma guerra social. Porque não posso falar do bem-estar de pessoas negras em um Brasil liderado por brancos. Não posso falar sobre isso sem pensar que nossas histórias estão sendo contadas pela branquitude. Não somos minorias, somos minorizados", complementa.

Para Maria Eduardanão se ver na tela, ou em outros espaços de poder, afeta a saúde mental. Ela acredita que faz toda diferença poder se projetar em certas posições, pois assim é possível se permitir ter esperança. "Nós somos alvos. A gente está sendo sempre monitorado. Então, acho que a representatividade afeta o bem-estar emocional porque a gente consegue olhar para os espaços ver que não são lugares inatingíveis".

Procurar ajuda psicológica é um passo importante para pessoas negras que estão enfrentando os desafios do racismo. Contudo, muitas pessoas não se sentem  acolhidas nos consultórios. Isso se deve ao fato de que o racismo pode se manifestar também no processo terapêutico, na falta de identificação do paciente com o profissional, ou na invalidação do profissional em relação às feridas raciais. Por esse motivo, pessoas negras têm buscado cada vez mais o atendimento feito por psicólogos da mesma cor e com abordagem decolonial, pois isso lhes oferece um ambiente de maior segurança para expressar o que sentem. 

psicologia
preta

 

A partir da noção de que a produção da subjetividade acontece também pela influência dos contextos em que um indivíduo está inserido, a Psicologia Preta propõe um olhar decolonial sobre o tratamento de pessoas negras. No Brasil, a psicanalista Virgínia Bicudo foi a pioneira nos estudos sobre os efeitos psíquicos do racismo. Nascida em São Paulo e descendentes de escravos, em 1945, ela publicou sua tese de mestrado intitulada “Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo”, primeiro trabalho no país a discutir a saúde mental de pessoas negras. Além de Virginia, outros pesquisadores de saúde mental como Juliano Moreira e Neusa Santos Souza contribuíram para a expansão da psicologia preta no país. 

No entanto, apesar da produção de conhecimento sobre esse ramo da psicologia ter sido expandido, Lucas Veiga, escritor e Mestre em Psicologia, ressalta que as publicações de autoras e autores negros têm sido alvo de epistemicídio, e por isso, as abordagens clínicas ainda são marcadas pelo colonialismo. 

Lucas Veigaescritor e Mestre em Psicologia
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Para estudar a psicologia preta, Dandara Abreu não conseguiu contar com a grade curricular do curso de psicologia. Hoje já formada na área e mestranda no Instituto de Medicina Social da UERJ, ela relata que a questão racial se quer era inserida nos debates na graduação, mesmo sendo fundamental para que ocorra mais acolhimento no atendimento clínico.  As discussões sobre saúde mental da população negra só foram implementadas no seu curso de psicologia após uma série de movimentos organizados pelas estudantes negras e negros.

Roberta Frederico, psicóloga e diretora do Instituto Sankofa, acredita que a descolonização da psicologia requer um diálogo contínuo com a psicologia africana. Essa vertente teórica, além de pensar na subjetividade negra, propõe novos caminhos nas abordagens clínicas a partir dos conceitos da filosofia africana. Para Roberta, o senso de comunidade é o que mais distingue este ramo. Há na psicologia africana o entendimento de que a escravidão causou um trauma coletivo, e por isso, pessoas negras partilham a mesma dor, mas também entendem que sua força está no encontro com o outro.

 

É ideia de um eu estendido. Encontrar nos antepassados, encontrar naqueles iguais a mim o que eu preciso”, explica. "É necessário expandir essa abordagem para que pessoas negras não sejam vistas apenas sob a perspectiva da carência. Com esse  jeito  africano de ver a vida, o profissional consegue olhar a riqueza,  a potencialidade que existe no sujeito que está sendo atendido, e mostrar que sua vida vai além do racismo". 

A ausência de estudos sobre a psicologia preta ou africana colabora com a falta de compreensão adequada das dores das pessoas negras, resultando na invisibilização dessas experiências. Sem adotar uma perspectiva descolonizada, os profissionais de psicologia não conseguem  escuta completa e acolhimento em seus consultórios. Dado que o racismo está profundamente enraizado na estrutura social, é imprescindível que o(a) psicólogo(a) reconheça as influências da opressão sistêmica nas palavras, pensamentos e reações do paciente durante o tempo de atendimento. 

Pela carência de profissionais de saúde mental que reconheçam e abordem adequadamente a violência racial, é comum que pessoas negras busquem psicólogos que compartilhem da mesma identidade étnica. Mas a decisão de buscar esses profissionais também está relacionada à busca por identificação.

 

O atendimento feito por uma psicóloga negra foi um diferencial para Júlia Martins. Ela destaca que, ao ser atendida por alguém como ela, conseguiu expressar mais o que sentia, trocar experiências de forma aberta e fortalecer sua identidade racial. 

Júlia Martinsestudante de jornalismo, 23 anos
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Timóteo Paixão é psicólogo e destaca que o paciente negro pode chegar ao consultório com marcas do racismo. Desse modo, quando o sujeito se encontra com um profissional da mesma cor, que tenha conhecimento do contexto social e consciência racial, consegue ter sua dor amenizada. 

A busca por ajuda profissional é uma das maneiras de lidar com a dor do banzo, mas não é a única. Considerando que o racismo se manifesta de diversas maneiras, pessoas pretas e pardas devem explorar outras práticas de autocuidado para produzir mais vida.

para a dor
virar cicatriz

 

Para achar alívio em meio a dor e não permitir que a discriminação racial traga  limitações, a professora de história e mestre em Educação Janete Santos Ribeiro reforça que a comunidade negra precisa, diariamente, se reconhecer e desenvolver a consciência racial. “O que temos hoje é uma alienação de si. Uma alienação do que é ser uma pessoa preta numa sociedade como a nossa. Essa ignorância sobre a estrutura racista impede que tenhamos consciência do que é banzo hoje”. 

 

Professora na rede pública, Janete conta que não há nas escolas um trabalho para o fortalecimento da identidade racial dos alunos devido ao racismo institucional. Apesar da criação da Lei 10639, que obriga as escolas de ensino médio e fundamental a implementarem a disciplina de história e cultura afro-brasileira, o esforço para o ensino sobre a consciência racial dos alunos ainda parte de ações individuais dos professores. “Se o jovem desenvolve essa consciência, consegue entender melhor seus  sentimentos e conseguimos criar antídotos coletivos”. 

 

Ao reconhecerem sua identidade racial, as pessoas negras passam a buscar um maior envolvimento com os espaços culturais marcados pela Diáspora Africana, resgatando, assim, na sua ancestralidade a força que necessitam. “Se pegarmos o Cais do Valongo, por exemplo. A população negra não frequenta esses lugares. Não se apropriou desse lugar como seu, como memória dos que viveram antes. Essa aproximação do que é nosso, daquilo que foi deixado pelos ancestrais, nos traz essa sobrevivência psíquica”, explica Janete. 

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O Cais do Valongo (RJ) foi o maior porto de entrada de escravos na  América Latina  - Foto: Arquivo pessoal

Além do reconhecimento de si, o letramento racial ajuda pessoas negras a identificar a violência nas relações, nos ambientes que frequentam, e até mesmo, nas políticas governamentais. Essa percepção fortalece as estratégias de enfrentamento e promove o autocuidado. “O letramento racial ajuda muito nos relacionamentos, principalmente inter-raciais. Isso faz a gente entender que aqueles que são brancos e estão perto de nós podem produzir violência. E quando temos esse letramento conseguimos perceber essa violência, e aí sim, ajustar ou cortar o laço com aquela pessoa”, destaca Mauro Baracho. 

 

Ao reconhecer sua ancestralidade, conectar-se com a cultura e história afro-brasileira e olhar para dentro de si, uma pessoa negra desenvolve um orgulho ainda maior de sua própria identidade. A pesquisadora de moda afro-brasileira Maria do Carmo enfatiza que ao longo da história, os movimentos negros lutaram para que a estética  negra não fosse invisibilizada. “A branquitude sempre exerceu seu domínio apagando a nossa identidade, nossa corporeidade. E por isso a estética negra demorou para começar a ser aceita nos editoriais de moda, campanhas publicitárias, veículos de comunicação, capas de revistas”, argumenta. 

Nesse contexto, Maria do Carmo enxerga o movimento Orgulho Crespo, cuja primeira marcha ocorreu em 2015 na Avenida Paulista, como uma mobilização fundamental na batalha pelo reconhecimento da beleza negra. As ativistas do movimento buscavam a valorização da moda afro-brasileira, dos penteados de cabelo crespo e dos traços estéticos da imagem negra. Maria destaca que o Orgulho Crespo tem como objetivo não só disputar pela representatividade, mas também encorajar pessoas negras a sentirem orgulho de si e a não se submeterem aos padrões impostos.

 

“A gente cresce sem autoestima na sociedade. O Orgulho Crespo vem porque a partir do momento que  você fala sobre orgulho do seu cabelo, você aceita como ele é. Por isso que durante as marchas as ativistas costumavam gritar 'Abaixo a ditadura da chapinha' . Falar desse orgulho é falar que você não precisa mudar e  agredir seu cabelo. É falar que você tem o cabelo que tem e isso não te torna um marginal".

Em SP, o dia de 26 de julho foi estabelecido como o dia do Orgulho Crespo - Foto: Divulgação

Jorge Barcelos
Júlia Martins
Lucas Silva
Francyelli Cunha
Maria Eduarda

No entanto, embora o reconhecimento e o letramento sejam essenciais, a filosofia africana defende que sem aquilombamento não há cura para as feridas. No período colonial, os quilombos representavam espaços de acolhimento, cuidado e resistência para os escravos, permitindo que africanos se conectassem com suas raízes mesmo em terras distantes. Por isso, assim como no passado, ao estarem em comunidade,  pessoas negras podem encontrar alívio para suas dores. 

 

Por isso, a psicóloga Caroline Fontes defende a importância de pessoas negras manterem um contato contínuo com seus semelhantes para ter mais bem-estar emocional. “Como eu vou aumentar minha autoestima consumindo conteúdos somente de pessoas brancas? O autocuidado passa por consumir aquilo que é produzido e cultivar relações com aqueles que são parecidos com você”. 

Lucas Silva encontrou no hip-hop, gênero musical popularizado pela comunidade negra na década de 70, o poder de elevar sua autoestima. Ele explica que isso se tornou possível ao encontrar no hip-hop uma representação de tantas pessoas como ele.  "O meu contato com o hip-hop foi tão frutífero por causa desse reconhecimento. O primeiro som que eu ouvi foi sobre um assalto a um banco. E eu não ia assaltar um banco, mas tinha toda uma narrativa na música. E aí eu fui me reconhecendo muito naquilo, sabe? Me identificando com o perfil daquele cara. Então, no hip hop, eu pude entender mais quem eu era e vi que tinham iguais. Vi que eu tava numa mesa com meus iguais e isso traz pertencimento", diz Lucas. 

Reconhecer sua negritude significa entender-se como uma parte do outro e somente na conexão achar a plenitude da vida. É saber que não posso ser "eu" sem "nós". Por essa razão, no pensamento africano, a ancestralidade é referenciada, pois há a compreensão de que se pessoas negras herdaram a dor dos antepassados, podem, de igual forma, receber sua sabedoria para viver. É encontrar naqueles que se foram a força para seguir, e assim, construir um futuro melhor para aqueles que ainda virão. Nesse sentido, estar em espaços majoritariamente negros e desenvolver relações com a comunidade traz segurança e cuidado para Júlia, Maria Eduarda, Francyelli, Jorge e Lucas Silva.

Clique nos vídeos e confira os relatos a seguir.  

Lucas Veiga escritor e Mestre em Psicologia
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O racismo fere e busca restringir as possibilidades de vida. Apesar das dolorosas experiências decorrentes da diáspora africana, Lucas Veiga defende que o debate sobre a saúde mental dessa comunidade deve contemplar os modos de existência que transcendem os padrões estabelecidos pela supremacia branca. Nessa perspectiva, o psicólogo ressalta que em seu livro "Clínica do Impossível: Linhas de Fuga e Cura", há um diálogo com o mito de Nanã para pensar a complexidade das subjetividades negras, pensar no sujeito para além do sofrimento.

No que se refere a questão racial, Lucas afirma que mito iorubá permite que pessoas negras encontrem em si novas maneiras de existir no mundo, e que apesar feridas do racismo, há como reescrever sua própria narrativa. "Eu recebo no meu consultório

 pessoas que estão marcadas pelos efeitos do racismo e do colonialismo nas suas subjetividades. E eu poderia olhar pra isso e pensar: 'Que triste, vamos acolher essa pessoa. Isso foi produzido e é isso, vou acompanhar, acolher e sinto muito'.  Isso é uma perspectiva. Uma outra perspectiva é: 'sim, o racismo produziu isso em você, mas em você está contida a possibilidade de transmutação. Está contida a possibilidade de criar outra forma de ser, estar, sentir e desejar", ressalta. O complexo de Nanã convida aqueles que vivenciam a negritude a descobrirem, tanto no outro como dentro de si, a capacidade de transcender a dor, transcender o banzo. 

Lucas Kelly 

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